"passarinho no ninho, tudo envelheceu; cobra no buraco, palavra morreu"

27 de mar. de 2014

O Espelho

1. Eu

Ele acorda, como de costume, atrasado, mal se veste, engole as sobras da janta e corre para fora de casa. Entre ele e a estação de metrô há um trajeto que pode ser abreviado ao pegar um cortacaminho, aquela “fenda entre dois edifícios”. Sem nome, gosta de chamá-la de Rua Doutor Fulano de Tal. Lá, moram baratas aos montes, uma televisão quebrada, restos de roupas e uma ratazana simpática; ele costuma vê-la à noite correndo ao seu lado, buscando se esconder no primeiro buraco que acha pelo caminho. Divide-se, então, em um sentimento de asco que às vezes lhe sobe pelas canelas, e um estranho desejo de alimentar o bichinho com as sobras de seu lanche - o que lhe impede de realizar esta ação de amor e carinho é a certeza de que alimentar ratos da cidade não parece ser uma prática muito saudável e que tal inclinação é prova mais ou menos clara da loucura que sente lhe tomar, aos poucos, sorrateiramente, às vezes em perguntas foradecontexto, às vezes em frases que lhe escapam quando está sozinho diante do espelho. É à noite também que costuma forçar a memória para tentar resgatar, sempre em vão, os primeiros versos de alguma poesia que começou a criar ainda no metrô. Prática adquirida após a leitura de um relato de Borges, que dizia ter começado a escrever poemas por conta do problema na vista que se agravara, elaborando o argumento e decorando os versos criados no trajeto feito de trem do trabalho até sua casa. Pensa naquele velho cego sentado no banco preferencial, o queixo apoiado nas mãos apoiadas na bengala, a traçar mentalmente versos decassílabos de rimas raras ou versos soltos de uma sonoridade apenas possível no castelhano, que ele num primeiro contato não gostou mas que ao longo do tempo passaram a ser assustadores e lhe dizer coisas que nunca dantes pudera vislumbrar.

Na noite anterior, enquanto atravessava o corredor da Rua Doutor Fulano de Tal, tentou esboçar os primeiros versos de uma poesia mui divertida sobre um poeta pequenoburguês & gorducho a caminhar pelos corredores de seu tão bemobiliado & aconchegante apartamento, que, em suas crises nervosas, imaginava-se como um mendigo esfarrapado & faminto a caminhar pelos corredores de uma cidade inóspita & absolutamente impessoal e percebeu quão difícil vinha se tornando, não apenas para si, mas para toda a Humanidade, essa atividade mnemônica de decorar versos antes de passar para o papel; formulou uma solução, que num primeiro momento lhe pareceu absolutamente formidável, mas insuficiente e até sem sentido, vamos dizer, numa segunda análise um pouco mais criteriosa: a de se afundar na leitura de poesias das mais variadas, porque certo dia, nesta mesma ruazinha vazia, lembrou-se de sua adolescência, quando passava as madrugadas afundado na leitura dos livros de Manuel Bandeira, ao ponto de, involuntariamente, seus pensamentos serem todos construídos em versos soltos com algumas riminhas pobres, mas, mesmo assim, rimas com algum tipo de métrica; e as vezes chegava mesmo a sonhar em versos, prática que lhe dava a certeza de que se tornaria um grande poeta na maioridade. Mas já no meio da primeira estrofe se perdeu a pensar na América Latina, nas tantas e tantas veredas que formam o perímetro da América Latina, e se emocionou e chegou quase a esboçar um movimento abrupto para correr a saltos largos pela escada até seu quarto e pegar o Caderno Vermelho de Suas Lamentações e escrever um longo poema sobre Borges andando de metrô em São Paulo, sobre Borges tentando entrar no metrô da Sé, empurrado por malandros cansados e senhoras de sacola, sobre Borges visitando a São Paulo de seus pesadelos, o labirinto de labirintos que é a São Paulo de seus pesadelos sem fim. Borges no metrô, mais precisamente na estação da Sé, tentando se lembrar dos primeiros versos que compôs, mais precisamente versos compostos sobre sua sombra ou sobre o seu reflexo também de olhos opacos projetados no espelho de um banheiro perdido no tempo. Movimento abrupto este, abortado um pouco antes de efetivamente acontecer porque se alumbrou com a imagem de um cego diante do espelho, que lhe pareceu de uma sensibilidade formidável e, mesmo depois de imaginar que na superfície teriam respingos brancos da pastadedente e, ao fundo, uma privada recém-usada, continuou achando de uma tremenda força e delicadeza só possíveis de serem alcançadas nas mais belas poesias. 

Naquela manhã, atrasado, como de costume, ele se precipita pelas escadas da vereda e atravessa um corredor cercado por dois imensos edifícios. De onde está pode ver o enorme jardim tão bem cuidado pelos empregados, também vê o playground onde crianças macaqueiam descabelando as babás, pistas para velhos senis andarem apoiados em enfermeiros - alguns gritando ofensas, outros indelicadamente acariciando as calças brancas de seus subordinados - e uma quadra onde adolescentes jogam bola. O verde amarelado da grama lhe tomou de assalto, impedindo de ver um imenso espelho a bloquear o fim da rua. Já não dava mais tempo: topando com os pés na mistura harmônica da lâmina de vidro e metal, assustou-se ao encontrar do outro lado um desterro e alguém a lhe observar com olhos de abismo.

2. O Duplo

Borges e Margarita Guerrero, voltados um para o outro, ao telefone, em cartas ou mesmo em sonhos, no típico linguajar irreconhecível sussurrado enquanto se dorme, dizem:

- Num dos volumes de ‘Cartas Edificantes e Curiosas’ que apareceram em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão; num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos espelhos. O Pe. Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado por sua pena ficou inacabado; cento e cinquenta anos depois, Herbert Allen Giles assumiu a tarefa interrompida. Segundo Giles, a crença no Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo. Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia. O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha muito tênue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Depois irão despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. Junto às criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água. No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Espelho. Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.

Que é mais ou menos como se dissessem:

- Sugerido ou estimulado pelos espelhos, as águas e os irmãos gêmeos, o conceito de duplo é comum a muitas nações. É plausível supor que expressões como ‘Um amigo é um outro eu’ de Pitágoras ou o ‘Conhece-te a ti mesmo’ platônico se inspiraram nele; na Alemanha chamaram-no ‘Doppel gänger’; na Escócia ‘fetch’, porque vem buscar (fetch) os homens para levá-los à morte. Encontrar-se consigo mesmo é, por conseguinte, funesto. A trágica balada Ticoneroga, de Robert Louis Stevenson, conta uma lenda desse tema. Recordemos também o estranho quadro How they met tremselves, de Rossetti: dois amantes se encontram consigo mesmos, no crepúsculo de um bosque. Caberia citar exemplos análogos de Hawthorne, de Dostoiewski e de Alfred de Musset. Para os judeus, pelo contrário, a aparição do duplo não era presságio de morte próxima; era a certeza de haver alcançado o estado profético, assim o explica Gershom Scholem. Uma lenda recolhida pelo Talmude narra o caso de um homem em busca de Deus, que se encontrou consigo mesmo. No conto William Wilson, de Poe, o duplo é a consciência do herói; este o mata e morre. Na poesia de Yeats, o duplo é nosso anverso, nosso contrário, o que nos complementa, o que não somos nem seremos. Plutarco escreve que os gregos deram o nome de ‘outro eu’ ao embaixador de um rei.

Que alguém dentro de mim talvez traduzisse, sem esconder um riso bobo diante da referência torta, que o perigo de olhar para o reflexo que se insinua no espelho é que ele olhe para dentro de você.

3. O Outro 

Eu acordo de um salto, como de costume, um pouco antes do grito de despertador.

Acordar cedo me traz uma experiência de delicadeza e pressa. Gosto das cores que se projetam amarelas pelo vidro do banheiro, vê-las me traz uma sensação tranquila que só pode ser comparada à incredulidade que sinto quando penso que as cores me acalmam ou me enlevam ou me amedrontam ou me fazem querer viver um pouco mais de modo que possa decifrá-las dentro de mim, e costumo perder a hora desenhando com o dedo na parede os traços das cores, e quando percebo o atraso iminente, corro com o café e com o banho e num pulo estou em direção ao metrô. Entro pela viela do lado de casa, um corredor estreito e sem placa que penso abreviar a quantidade de passos que faltam até a estação. Por não ter nome, brinco de dar aquele que mais faz sentido pra mim. Já chamou Rua da Aurora, já chamou Travessia Manuel Bandeira, já chamou Caminho da Pichação ou Caminho da Pixação, já chamou Rua do Chile, em homenagem a um dos grafiteiros, talvez o dos desenhos de que menos gosto, que assina por “chileno”, já chamou Grande Avenida a Cortar o Coração de Macondo, já chamou Abolição, apenas, já chamou Vereda da Marofa, porque lá sempre tem um grupo de pessoas fumando e quando passo por ele costumo fazer um comprimento quase imaginário com a cabeça e um Bom Dia quando é de manhã ou Boa Noite quando já está escuro, sucedido por Boa Noite ou Bom Dia, de acordo com a posição do Sol, de um deles ou de alguns deles mas nunca de todos, já chamou Viela Das Coisas Inúteis, já chamou Caminho Cortazar, já chamou Travessia Jorge Luis Borges, já chamou Viela J. L. Borges, mas nestes últimos tempos, cada dia a chamo pelo nome de Passagem Borges. 

Ontem à noite tentei tratá-la por Calle Poeta Octávio Paz, mas no meio do trajeto desisti e voltei para seu início me desculpando e lha chamando novamente de Passagem Borges. A insistência se dá, ou ao menos é esta a justificativa de agora, por conta de uma de suas narrativas. Nela, uma personagem comenta de um labirinto feito de apenas uma reta onde os gregos se perdiam. Tentei pesquisar para saber a história por traz da imagem mas todas as tentativas foram infrutíferas; coube então reinventá-la. Primeiro pensei na ponte de Procusto, a intransponível ponte de Procusto onde os passantes eram submetidos a torturas para encaixar-se na justeza que cabia a este Homem de Bem; mas morto o encaixotador, a ponte estava livre, de modo que não podia ser ela o que procurava. Pensei numa escada que se alonga aos abismos da noite, cujo final está perdido nas constelações mais distantes, imaginadas por gregos bêbados apenas em noites tediosas. Pensei num escorregador onde a criança se perde no meio da descida e se cansa de chorar, caindo, eternamente, até os confins do universo subterrâneo... Estendi, então, esta reta ao infinito, para alcançar a forma de um círculo; um corredor, talvez murado talvez com grafites nas paredes talvez com uma calça jeans abarrotada pelo canto talvez com baratas entrando e saindo dos bueiros talvez com objetos em desuso que servem como bálsamo para tênis furados em dias de chuva talvez com irregularidades no chão que fazem acumular possas d’água, estendendo-se até as barreiras da compreensão, senão humana, ao menos minha.

Neste corredor, um bêbado desenha com a urina longos círculos. Ele se balança e o líquido amarelo vai, laço tecido com o que seu corpo abandona, de parede a parede acompanhando seu movimento trôpego. Espero a mijada porque, apesar de cansado, não quero ter minha calça ou mesmo minha camiseta manchadas com os fluídos de outrem. Ele ri cantando alguma canção embolada com a espessura de suas cicatrizes e anasalamento de sua voz; uma canção sobre uma terra em abandono, perdida na distância, próxima apenas nos sonhos que não mais podia ter - boto em sua métrica, uma vez que as palavras eram, como sempre são, incomunicáveis. Ele, ao passar por mim, me cumprimenta com a cabeça.

Atrasado, como de costume, vejo-o mais uma vez. O aceno me faz ter a certeza de estar perdido, ou, mais precisamente, a repetição deste aceno: entro na Passagem Borges e logo de cara me deparo com o movimento lento da cabeça. Passo por ele e ando e ando e ando. Depois de um tempo – quem saberia precisá-lo? – me deparo com o mesmo bêbado a acenar. A imagem se repete por tantas e tantas vezes que meus passos me levavam para aquele exato lugar, ao termino de todo perímetro do labirinto. A cada volta algo é deixado pelo caminho – por uma ilusão de meus olhos ou pelo agigantamento da cabeça que balança - e o mosaico absurdo das quinquilharias esquecidas verte suas peças em vazio. Por quanto tempo andarei por aquele cenário desolador tendo apenas como companhia um bêbado ou menos que isso, um aceno de um bêbado que, eu não descartaria esta possibilidade, nem a mim se dirige? 

Em um determinado momento um objeto refletor se insinua para mim no horizonte, um objeto refletor de grandes proporções instalado ali por mãos invisíveis em um deserto de miudezas que antes se tratava de um corredor mais ou menos estreito que me levava em menos tempo, ou assim eu calculava, da porta de casa até a estação de metrô. [Quantas camadas de mim mesmo eu conseguiria atingir ali? Eu como uma personagem de um sonho a olhar para um outro eu refletido num espelho a escrever a cena para um outro eu que me lerá no futuro, que me lerá, assim eu espero, num futuro mais ou menos distante, quanto tudo for uma lembrança garranchada, e que pensará, assim eu espero, que não se trata de uma cena ou de um sonho e sim de uma miríade, uma miríade das coisas inúteis que me perseguem, ou, assim eu espero, me perseguiam quando ainda não sabia viver.] Então me lembro de que para os gregos os labirintos eram também lugar de purificação: uma distância a ser percorrida onde se deixa a doença ou a dor pelas curvas de um caminho absurdo. 

Perder-se, então, como tratamento – quantas memórias abandonadas nestes corredores que se bifurcam? 

Perder-se, então, como cura – esquecendo-se dos demônios antigos, afinal, quantos outros nos esperam? 

Perder-se como uma forma de redenção.

Um comentário:

Daisy Serena disse...
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