pedra no curral

"passarinho no ninho, tudo envelheceu; cobra no buraco, palavra morreu"

27 de mar. de 2014

O Espelho

1. Eu

Ele acorda, como de costume, atrasado, mal se veste, engole as sobras da janta e corre para fora de casa. Entre ele e a estação de metrô há um trajeto que pode ser abreviado ao pegar um cortacaminho, aquela “fenda entre dois edifícios”. Sem nome, gosta de chamá-la de Rua Doutor Fulano de Tal. Lá, moram baratas aos montes, uma televisão quebrada, restos de roupas e uma ratazana simpática; ele costuma vê-la à noite correndo ao seu lado, buscando se esconder no primeiro buraco que acha pelo caminho. Divide-se, então, em um sentimento de asco que às vezes lhe sobe pelas canelas, e um estranho desejo de alimentar o bichinho com as sobras de seu lanche - o que lhe impede de realizar esta ação de amor e carinho é a certeza de que alimentar ratos da cidade não parece ser uma prática muito saudável e que tal inclinação é prova mais ou menos clara da loucura que sente lhe tomar, aos poucos, sorrateiramente, às vezes em perguntas foradecontexto, às vezes em frases que lhe escapam quando está sozinho diante do espelho. É à noite também que costuma forçar a memória para tentar resgatar, sempre em vão, os primeiros versos de alguma poesia que começou a criar ainda no metrô. Prática adquirida após a leitura de um relato de Borges, que dizia ter começado a escrever poemas por conta do problema na vista que se agravara, elaborando o argumento e decorando os versos criados no trajeto feito de trem do trabalho até sua casa. Pensa naquele velho cego sentado no banco preferencial, o queixo apoiado nas mãos apoiadas na bengala, a traçar mentalmente versos decassílabos de rimas raras ou versos soltos de uma sonoridade apenas possível no castelhano, que ele num primeiro contato não gostou mas que ao longo do tempo passaram a ser assustadores e lhe dizer coisas que nunca dantes pudera vislumbrar.

Na noite anterior, enquanto atravessava o corredor da Rua Doutor Fulano de Tal, tentou esboçar os primeiros versos de uma poesia mui divertida sobre um poeta pequenoburguês & gorducho a caminhar pelos corredores de seu tão bemobiliado & aconchegante apartamento, que, em suas crises nervosas, imaginava-se como um mendigo esfarrapado & faminto a caminhar pelos corredores de uma cidade inóspita & absolutamente impessoal e percebeu quão difícil vinha se tornando, não apenas para si, mas para toda a Humanidade, essa atividade mnemônica de decorar versos antes de passar para o papel; formulou uma solução, que num primeiro momento lhe pareceu absolutamente formidável, mas insuficiente e até sem sentido, vamos dizer, numa segunda análise um pouco mais criteriosa: a de se afundar na leitura de poesias das mais variadas, porque certo dia, nesta mesma ruazinha vazia, lembrou-se de sua adolescência, quando passava as madrugadas afundado na leitura dos livros de Manuel Bandeira, ao ponto de, involuntariamente, seus pensamentos serem todos construídos em versos soltos com algumas riminhas pobres, mas, mesmo assim, rimas com algum tipo de métrica; e as vezes chegava mesmo a sonhar em versos, prática que lhe dava a certeza de que se tornaria um grande poeta na maioridade. Mas já no meio da primeira estrofe se perdeu a pensar na América Latina, nas tantas e tantas veredas que formam o perímetro da América Latina, e se emocionou e chegou quase a esboçar um movimento abrupto para correr a saltos largos pela escada até seu quarto e pegar o Caderno Vermelho de Suas Lamentações e escrever um longo poema sobre Borges andando de metrô em São Paulo, sobre Borges tentando entrar no metrô da Sé, empurrado por malandros cansados e senhoras de sacola, sobre Borges visitando a São Paulo de seus pesadelos, o labirinto de labirintos que é a São Paulo de seus pesadelos sem fim. Borges no metrô, mais precisamente na estação da Sé, tentando se lembrar dos primeiros versos que compôs, mais precisamente versos compostos sobre sua sombra ou sobre o seu reflexo também de olhos opacos projetados no espelho de um banheiro perdido no tempo. Movimento abrupto este, abortado um pouco antes de efetivamente acontecer porque se alumbrou com a imagem de um cego diante do espelho, que lhe pareceu de uma sensibilidade formidável e, mesmo depois de imaginar que na superfície teriam respingos brancos da pastadedente e, ao fundo, uma privada recém-usada, continuou achando de uma tremenda força e delicadeza só possíveis de serem alcançadas nas mais belas poesias. 

Naquela manhã, atrasado, como de costume, ele se precipita pelas escadas da vereda e atravessa um corredor cercado por dois imensos edifícios. De onde está pode ver o enorme jardim tão bem cuidado pelos empregados, também vê o playground onde crianças macaqueiam descabelando as babás, pistas para velhos senis andarem apoiados em enfermeiros - alguns gritando ofensas, outros indelicadamente acariciando as calças brancas de seus subordinados - e uma quadra onde adolescentes jogam bola. O verde amarelado da grama lhe tomou de assalto, impedindo de ver um imenso espelho a bloquear o fim da rua. Já não dava mais tempo: topando com os pés na mistura harmônica da lâmina de vidro e metal, assustou-se ao encontrar do outro lado um desterro e alguém a lhe observar com olhos de abismo.

2. O Duplo

Borges e Margarita Guerrero, voltados um para o outro, ao telefone, em cartas ou mesmo em sonhos, no típico linguajar irreconhecível sussurrado enquanto se dorme, dizem:

- Num dos volumes de ‘Cartas Edificantes e Curiosas’ que apareceram em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão; num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos espelhos. O Pe. Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado por sua pena ficou inacabado; cento e cinquenta anos depois, Herbert Allen Giles assumiu a tarefa interrompida. Segundo Giles, a crença no Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo. Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia. O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha muito tênue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Depois irão despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. Junto às criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água. No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Espelho. Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.

Que é mais ou menos como se dissessem:

- Sugerido ou estimulado pelos espelhos, as águas e os irmãos gêmeos, o conceito de duplo é comum a muitas nações. É plausível supor que expressões como ‘Um amigo é um outro eu’ de Pitágoras ou o ‘Conhece-te a ti mesmo’ platônico se inspiraram nele; na Alemanha chamaram-no ‘Doppel gänger’; na Escócia ‘fetch’, porque vem buscar (fetch) os homens para levá-los à morte. Encontrar-se consigo mesmo é, por conseguinte, funesto. A trágica balada Ticoneroga, de Robert Louis Stevenson, conta uma lenda desse tema. Recordemos também o estranho quadro How they met tremselves, de Rossetti: dois amantes se encontram consigo mesmos, no crepúsculo de um bosque. Caberia citar exemplos análogos de Hawthorne, de Dostoiewski e de Alfred de Musset. Para os judeus, pelo contrário, a aparição do duplo não era presságio de morte próxima; era a certeza de haver alcançado o estado profético, assim o explica Gershom Scholem. Uma lenda recolhida pelo Talmude narra o caso de um homem em busca de Deus, que se encontrou consigo mesmo. No conto William Wilson, de Poe, o duplo é a consciência do herói; este o mata e morre. Na poesia de Yeats, o duplo é nosso anverso, nosso contrário, o que nos complementa, o que não somos nem seremos. Plutarco escreve que os gregos deram o nome de ‘outro eu’ ao embaixador de um rei.

Que alguém dentro de mim talvez traduzisse, sem esconder um riso bobo diante da referência torta, que o perigo de olhar para o reflexo que se insinua no espelho é que ele olhe para dentro de você.

3. O Outro 

Eu acordo de um salto, como de costume, um pouco antes do grito de despertador.

Acordar cedo me traz uma experiência de delicadeza e pressa. Gosto das cores que se projetam amarelas pelo vidro do banheiro, vê-las me traz uma sensação tranquila que só pode ser comparada à incredulidade que sinto quando penso que as cores me acalmam ou me enlevam ou me amedrontam ou me fazem querer viver um pouco mais de modo que possa decifrá-las dentro de mim, e costumo perder a hora desenhando com o dedo na parede os traços das cores, e quando percebo o atraso iminente, corro com o café e com o banho e num pulo estou em direção ao metrô. Entro pela viela do lado de casa, um corredor estreito e sem placa que penso abreviar a quantidade de passos que faltam até a estação. Por não ter nome, brinco de dar aquele que mais faz sentido pra mim. Já chamou Rua da Aurora, já chamou Travessia Manuel Bandeira, já chamou Caminho da Pichação ou Caminho da Pixação, já chamou Rua do Chile, em homenagem a um dos grafiteiros, talvez o dos desenhos de que menos gosto, que assina por “chileno”, já chamou Grande Avenida a Cortar o Coração de Macondo, já chamou Abolição, apenas, já chamou Vereda da Marofa, porque lá sempre tem um grupo de pessoas fumando e quando passo por ele costumo fazer um comprimento quase imaginário com a cabeça e um Bom Dia quando é de manhã ou Boa Noite quando já está escuro, sucedido por Boa Noite ou Bom Dia, de acordo com a posição do Sol, de um deles ou de alguns deles mas nunca de todos, já chamou Viela Das Coisas Inúteis, já chamou Caminho Cortazar, já chamou Travessia Jorge Luis Borges, já chamou Viela J. L. Borges, mas nestes últimos tempos, cada dia a chamo pelo nome de Passagem Borges. 

Ontem à noite tentei tratá-la por Calle Poeta Octávio Paz, mas no meio do trajeto desisti e voltei para seu início me desculpando e lha chamando novamente de Passagem Borges. A insistência se dá, ou ao menos é esta a justificativa de agora, por conta de uma de suas narrativas. Nela, uma personagem comenta de um labirinto feito de apenas uma reta onde os gregos se perdiam. Tentei pesquisar para saber a história por traz da imagem mas todas as tentativas foram infrutíferas; coube então reinventá-la. Primeiro pensei na ponte de Procusto, a intransponível ponte de Procusto onde os passantes eram submetidos a torturas para encaixar-se na justeza que cabia a este Homem de Bem; mas morto o encaixotador, a ponte estava livre, de modo que não podia ser ela o que procurava. Pensei numa escada que se alonga aos abismos da noite, cujo final está perdido nas constelações mais distantes, imaginadas por gregos bêbados apenas em noites tediosas. Pensei num escorregador onde a criança se perde no meio da descida e se cansa de chorar, caindo, eternamente, até os confins do universo subterrâneo... Estendi, então, esta reta ao infinito, para alcançar a forma de um círculo; um corredor, talvez murado talvez com grafites nas paredes talvez com uma calça jeans abarrotada pelo canto talvez com baratas entrando e saindo dos bueiros talvez com objetos em desuso que servem como bálsamo para tênis furados em dias de chuva talvez com irregularidades no chão que fazem acumular possas d’água, estendendo-se até as barreiras da compreensão, senão humana, ao menos minha.

Neste corredor, um bêbado desenha com a urina longos círculos. Ele se balança e o líquido amarelo vai, laço tecido com o que seu corpo abandona, de parede a parede acompanhando seu movimento trôpego. Espero a mijada porque, apesar de cansado, não quero ter minha calça ou mesmo minha camiseta manchadas com os fluídos de outrem. Ele ri cantando alguma canção embolada com a espessura de suas cicatrizes e anasalamento de sua voz; uma canção sobre uma terra em abandono, perdida na distância, próxima apenas nos sonhos que não mais podia ter - boto em sua métrica, uma vez que as palavras eram, como sempre são, incomunicáveis. Ele, ao passar por mim, me cumprimenta com a cabeça.

Atrasado, como de costume, vejo-o mais uma vez. O aceno me faz ter a certeza de estar perdido, ou, mais precisamente, a repetição deste aceno: entro na Passagem Borges e logo de cara me deparo com o movimento lento da cabeça. Passo por ele e ando e ando e ando. Depois de um tempo – quem saberia precisá-lo? – me deparo com o mesmo bêbado a acenar. A imagem se repete por tantas e tantas vezes que meus passos me levavam para aquele exato lugar, ao termino de todo perímetro do labirinto. A cada volta algo é deixado pelo caminho – por uma ilusão de meus olhos ou pelo agigantamento da cabeça que balança - e o mosaico absurdo das quinquilharias esquecidas verte suas peças em vazio. Por quanto tempo andarei por aquele cenário desolador tendo apenas como companhia um bêbado ou menos que isso, um aceno de um bêbado que, eu não descartaria esta possibilidade, nem a mim se dirige? 

Em um determinado momento um objeto refletor se insinua para mim no horizonte, um objeto refletor de grandes proporções instalado ali por mãos invisíveis em um deserto de miudezas que antes se tratava de um corredor mais ou menos estreito que me levava em menos tempo, ou assim eu calculava, da porta de casa até a estação de metrô. [Quantas camadas de mim mesmo eu conseguiria atingir ali? Eu como uma personagem de um sonho a olhar para um outro eu refletido num espelho a escrever a cena para um outro eu que me lerá no futuro, que me lerá, assim eu espero, num futuro mais ou menos distante, quanto tudo for uma lembrança garranchada, e que pensará, assim eu espero, que não se trata de uma cena ou de um sonho e sim de uma miríade, uma miríade das coisas inúteis que me perseguem, ou, assim eu espero, me perseguiam quando ainda não sabia viver.] Então me lembro de que para os gregos os labirintos eram também lugar de purificação: uma distância a ser percorrida onde se deixa a doença ou a dor pelas curvas de um caminho absurdo. 

Perder-se, então, como tratamento – quantas memórias abandonadas nestes corredores que se bifurcam? 

Perder-se, então, como cura – esquecendo-se dos demônios antigos, afinal, quantos outros nos esperam? 

Perder-se como uma forma de redenção.

12 de mar. de 2014

ENSAIOS FOTOGRÁFICOS (primeira parte)

de Manoel de Barros



Ensaios Fotográficos

Imagens não passam de
incontinências do visual.
JORGE LUIS BORGES

O FOTÓGRAFO
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro horas da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski - seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

GORJEIOS
Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.

O ROCEIRO
No clarear do dia vou para o roçado
A capinar.
Até de tarde tiro o meu eito: arranco os inços tranqueiras, joás e bosta de bugiu que não serve nem pra esterco.
Abro a terra e boto as sementes.
Deixo as sementes para a chuva enternecer.
Dou um tempo.
Retiro de novo as pragas: dejetos de aves, adjetivos.
(Retiro os adjetivos porque eles enfraquecem as plantas)
E deixo o texto a germinar sobre o branco do papel
Na maior masturbação com as pedras e as rãs

LÍNGUAS
Contenho vocação pra não saber as línguas cultas.
Sou capaz de entender as abelhas do que alemão.
Eu domino os instintos primitivos.

A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.

A língua dos índios Guatós é múrmurra: é como se ao dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras.

A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito mais importante o rumor das palavras do que o sentido que elas tenham.
Usam trinados até na dor.

Na língua dos Guanás há sempre uma sombra do charco em que vivem.
Mas é língua matinal.
Há nos seus termos réstias de um sol infantil.

Entendo ainda o idioma inconversável das pedras.
É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das palavras.

Sei também a língua dos pássaros - é só cantar.'

O AFERIDOR
Tenho um Aferidor de Encantamentos.
A uma eçucena encostada no rosto de uma criança
O meu Aferidor deu nota dez.
Ao nomezinho de Deus no bico de um sabiá
O Aferidor deu nota dez.
A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura
O Aferidor deu nota vinte.
Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada sentado nas pedras de suas próprias ruínas
O meu Aferidor deu DESENCANTO.
(O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai.)

COMPARAMENTO
Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra antes de chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.

DESPALAVRA
Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

NINGUÉM
Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios, com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

O VENTO
Queria transformar o vento.
Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto.
Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física do vento: uma costela, o olho...
Mas a forma do vento me fugia que nem as formas de uma voz.
Quando se disse que o vento empurrava a canoa do índio para o barranco
Imaginei um vento pintado de urucum a empurrar a canoa do índio para o barranco.
Mas essa imagem me pareceu imprecisa ainda.
Estava quase a desistir quando me lembrei do menino montado no cavalo do vento - que lera em Shakespeare.
Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos prados com o menino.
Fotografei aquele vento de crinas soltas.

MIRÓ
Para atingir sua expressão fontana
Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros.
Desejava atingir a pureza de não saber mais nada.
Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo do quintal à busca de uma árvore.
E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo que havia aprendido nos livros.
Depois depositava sobre o enterro uma nobre mijada florestal.
Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de insetos, cascas de cigarra etc.
A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores.
Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um dejeto de mosca deixado na tela.
Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha escura.
O escuro o iluminava.

RUÍNA
Um monge descabelado me disse no caminho: "Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo". E o monge se calou descabelado.

BOLA SETE
Bola Sete não botava movimento.
Era incansável em não sair do lugar.
Igual o caranguejo de Buson que foi encontrado de manhã debaixo do mesmo céu de ontem.
Pra compensar tinha laia de poeta.
Dava qualidades de flor a uma rã.
Dava às pessoas qualidades de água.
Isso ele fazia com letras, não precisava se mover.
Onde estava era ele, a manhã e suas garças;
era ele, o acaso e suas cores; era ele, o riacho e suas margens; era ele, o horizonte e suas nuvens. Por aí.
Passarinhos brincavam nas paisagens de sua janela.
O mundo era perto.
Bastava estender as mãos que chegava no fim do mundo.
Bola Sete não botava movimento.
Era um sujeito desverbado que nem uma oração desverbada.

RABELAIS
Por volta de 1532 andava pelas ruas de Paris o doido de Rabelais.
O doido apregoava pregos enferrujados.
Ele sabia o valor do que não presta.
Rabelais chegaria a imaginar assim:
Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo, 
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos seres apagados.
Ou alguém que possa frequentar o futuro das palavras.
Vendo aquele maluco de rua a apregoar pregos enferrujados
O nossos pensador imaginou que talvez quisesse aquele homem
Anunciar as virtudes do inútil.
(Rabelais já havia afirmado antesmente que poesia é uma virtude do inútil.)

O PUNHAL
Eu vi uma cigarra atravessada pelo sol - como se um punhal atravessasse o corpo.
Um menino foi, chegou perto da cigarra, e disse que ela nem gemia.
Verifiquei com os meus olhos que o punhal estava atolado no corpo da cigarra
E que ela nem gemia!
Fotografei essa metáfora.
Ao fundo da foto aparece o punhal em brasa.

O CASAMENTO
Tentei uma aventura linguística.
Queria propor o enlace de um peixe com uma lata.
Uma lata é uma lata é uma lata é uma lata.
Busquei contiguidades verbais.
Busquei contiguidades substantivas para fazer o casamento.
A lata morava no quintal da minha casa entregue às suas ferrugens.
E o peixe no rio.
Veio um dia entrou uma enchente no quintal da minha casa.
E levou a lata com ela.
A lata ficou no fundo do rio.
No fundo do rio as ferrugens são mais espessas.
E a lata estava pegando craca no corpo.
Deu-se que o peixe se enferrujou da lata.
E penetrou em dentro nela.
O peixe estava enferrujado (apaixonado) na lata.
Penso que se deu um quiasmo: uma contaminação retórica do peixe com a lata.
Houve um casamento.
Moral da fábula: o peixe que não gozava de ser sucata quis gozar.

13 de fev. de 2014

Oroboro ou Uroboros ou mesmo Ouroboros

Então você está diante da casa de seus pais, ou de quem cuidou de você quando criança. Você está lá, diante do portão, com o sol a bater seu amarelo no cinza ou no branco ou mesmo no marromadeira das grades. É, agora, um visitante. Mas não é isso que faz teus passos vacilarem para a recepção calorosa ou rotineira ou indiferente de quem lá habita; um cachorro, enorme, entre você e o muro gradeado, late como um demônio ensandecido. Seus pelos eriçados, o branco de seus caninos atrozes, suas garras afiadas riscando o asfalto. “Os olhos da fera são pura superfície - você observacertadamente - por isso agem como um espelho refletindo o medo; o medo e sua irmã mais velha, a impotência”. Trata-se de um sonho, você imagina, afinal, não se lembra de como chegou ali e mesmo os cães da vizinhança, que sempre te intimidaram na infância, nunca pareceram tão selvagens e assustadores; mesmo assim, não dá um passo adiante. Você está parado, com os músculos prontos para a disparada – o cão só ameaça: estático, ele late: um aviso que você traduz na assertiva “A morte é a soma do movimento de meu corpo convulso com o salto da fera”. De repente o portão da tua casa se abre e o desespero te invade, “o cão pode pensar que sou eu o responsável pela tração da máquina, como se quisesse distraí-lo”, você pensa. Mas não. Tenta gritar. O medo te impede. Em saraivada claudicante o velho cão de tua antiga casa se precipita contra o demônio; você quer impedir o massacre mas não se move; o Cérbero avança e crava seus caninos radiantes no rabo do outro, que guincha de medo que se esgane de desespero que ladra de dor e você vê o vermelho da carne e os movimentos convulsos que aquele desenho absurdo faz parecer, um animal misturado a outro, formando um mesmo corpo, a morder o rabo, perfazendo um círculo torto. Oroboro ou Uroboros ou mesmo Ouroboros é uma cobra que morde a si mesma, num círculo em movimento. A ideia de que o fim e o começo se encontram num mesmo ponto, a imagem do Eterno Retorno, esta Roda Vazia & Desprovida De Sentido, sempre te pareceu um tanto deslocada: as garras da besta caçam a si mesma em um corpo infinito, sem partida e sem chegada, mais como um símbolo da Insaciável Fome Eterna ou mais como um Símbolo Autofágico da Compulsão ou mais como um símbolo do Parafuso Espanado das Pulsões: desejar saciar entediar Ou a vontade o impulso a dor Ou a presa a mordida o rabo. Nos olhos da fera – que te refletem – em uma simbiose de indiferença e fome, você acredita ver brilhar, tão rapidamente que cataloga como uma Miséria de Tempo Ínfimo, um raio luminoso da mais profunda tristeza.

4 de fev. de 2014

O pesadelo é rabiscado do seguinte modo:

desembarcarei na próxima estação do metrô P (ou a de onde M. me espera em sua casa, como há uns anos, ou a que se desenha em meu imaginário, da sorveteriadebairro, do sobradocongaragem, da vizinhança florida de música e amigos na calçada). Estou sentado. Todas as cadeiras do vagão são corpos a descansar de um longo dia de trabalho ou da longa viagem de corredores de concreto a rasgar a epiderme da Cidade. Apenas uma pessoa está de pé, uma mulher. Quando o trem começa a diminuir a velocidade, levanto-me. Quase sem esperar a concretização de meus movimentos vacilantes (o trem solavanca em sua estocada), ela se senta; deve estar muito cansada, penso, mas poderia ter um pouco mais de educação. Aguardo, diante das portas, o trem parar. Algumas pessoas me olham através do vidro; eu as vejo como borrões de cores dissonantes até mudar o foco de meu olhar e me deparar com a silhueta que se reflete, translúcida. A imagem que construo de mim. O trem, enfim, para. O que sou, além deste vidro riscado por estiletes de bêbados?... Só então reparo que a porta ainda não se abriu, que a porta nunca se abrirá, e sou levado em imaginação para Macondo para o trem a percorrer infinitamente o perímetro da América -daquela “América” que nos tomou de assalto nosso nome- sem paradas sem baldeações com o ingresso comprado apenas para a ida e me lembro então das ciganas das prostitutas e da santa idiota levada viva para o céu numa tarde de ventania pelas quais me apaixonei por todas aquelas madrugadas debruçado na leitura; 100 Anos de Solidão a traçar no labirinto de suas linhas a imagem da América Latina, explorada e vilipendiada por séculos de martírio e resignação, a Macondo inalcançável de nossos sonhos, a Odisséia de nosso povo! - como cheguei a esboçar em um de meus alumbramentos - o livro emprestado por M. Impotente, me resigno, falso, e não grito. Em breve o metrô irá girar as roldanas que o movem para diante. Sempre para diante. Seguirá seu rumo, perfurando as fibras da crosta, a ossadura tectônica, ao encontro do coração fervilhante da Terra; a percorrer, sinuosamente, abismos insondáveis, construções absurdas meticulosamente lapidadas pelo tempo - invisíveis aos olhos, tamanha a escuridão - até a morte ou à eternidade.

6 de jan. de 2012

Do materialismo encantado


Amados pares e mestres, nasci numa distante província do Norte, na cidade de V., de pai nobre mas não de casta, e de condição bastante modesta. Morreu quando eu tinha apenas dois anos e não me lembro absolutamente dele. Deixou para minha mãe uma pequena casa de madeira e algum capital, não grande, mas suficiente para viver com os filhos sem passar necessidade. Minha mãe tinha apenas dois filhos: eu, Zinóvi, e meu irmão mais velho, Márkel. Era uns oito anos mais velho do que eu, cabeça quente e irascível, mas bondoso, alheio a caçoadas e até estranho de tão calado, sobretudo em casa, comigo, com minha mãe e os criados. Era bom aluno no colégio, mas não fazia amizade com os colegas, embora também não brigasse; ao menos era assim que minha mãe o recordava. Meio ano antes de sua morte, já com dezessete anos, deu para visitar a casa de um homem que vivia isolado em nossa cidade, uma espécie de exilado político deportado de Moscou para nossa cidade por ser um livre-pensador. Esse exilado era um sábio importante e filósofo renomado na universidade. Por alguma razão gostou de Márkel e passou a recebê-lo. Meu jovem irmão passava tardes inteiras em casa dele e isso durou todo o inverno, até que o exilado foi chamado de volta para o serviço público em Petersburgo, por um especial pedido seu, pois tinha protetores. Começou a Quaresma e Márkel não queria jejuar, insultava até zombava dessa prática: “Tudo isso são maluquices, dizia ele, e não existe Deus nenhum” – de sorte que minha mãe e os criados ficaram horrorizados, e eu um pouco, porque, embora tivesse apenas nove anos, essas palavras me deixaram muito assustado. Todos os nossos criados eram servos, quatro ao todo, todos comprados em nome de um grande senhor de terras nosso conhecido. Ainda me lembro de que minha mãe vendeu um dos quatro, a cozinheira Afímia, coxa e idosa, por sessenta rublos em papel, e em seu lugar contratou uma cozinheira livre. E eis que na sexta semana da Quaresma meu irmão piorou subitamente, se bem que sempre tivesse sofrido do peito, era de compleição fraca e predisposto à tísica; de boa estatura, mas delgado e doentio, ainda assim tinha um rosto agradável. Não sei se teria gripado, mas o médico apareceu lá em casa e logo cochichou à minha mãe que ele estava com uma tísica galopante e não sobreviveria à primavera. Minha mãe começou a chorar, a pedir cautelosamente (mais para não assustá-lo) que meu irmão jejuasse e comungasse nos santos mistérios divinos, porque ainda estava de pé. Ao ouvir isso, zangou-se e destratou o templo de Deus, mas caiu em meditação: logo percebeu que estava com uma doença perigosa e por isso a mãe o mandava se confessar e comungar enquanto ele ainda tinha forças. Aliás, ele mesmo já sabia que estava doente havia muito tempo, e um ano antes, à mesa, tocara friamente nesse assunto comigo e com minha mãe: “Não sou mais deste vosso mundo, talvez não dure nem mais um ano”, e foi como se tivesse profetizado. Uns três dias depois começou a Semana Santa. E meu irmão passou a jejuar desde a manhã de terça-feira. “Mãezinha, estou fazendo isto propriamente pela senhora, para deixá-la contente e tranquila” – disse-lhe. Minha mãe chorou de alegria e também de aflição: “Quer dizer que o fim dele está próximo, se lhe vem uma mudança tão repentina”. Mas não foi por muito tempo à igreja, caiu de cama, de sorte que já o confessaram e lhe deram comunhão em casa. Os dias andavam serenos, claros, cheios de fragrância no ar, a Páscoa caíra tarde naquele ano. Lembro-me de que ele passava a noite inteira tossindo, dormia mal, e de manhã sempre se vestia e tentava sentar-se numa poltrona macia. É assim que me lembro dele: sentado, sereno, dócil, rindo, doente mas de aspecto alegre, radiante. Estava de espírito completamente mudado – era maravilhosa a transformação que começara a sofrer de uma hora para outra! A velha aia entrava em seu quarto: “Meu caro, permite-me acender a lamparina diante do ícone?”. Antes ele não o permitia, até apagava. “Acende, queria, acende, eu era um monstro que lhe dava desgosto antes. Reza ao acender a lamparina a Deus, que rezarei por ti cheio de alegria. Então estaremos rezando a um único Deus”. Essas palavras nos pareceram estranhas, minha mãe ia para o seu quarto e chorava, só que ao entrar no quarto dele enxugava as lágrimas e assumia um aspecto alegre. “Mamãe, não chore, minha cara – dizia ele, às vezes -, eu ainda terei muita vida pela frente, vou me distrair muito com vocês, porque a vida, a vida é alegre, é prazerosa!” – “Ah, querido, que alegria podes ter se passas a noite ardendo em febre e tossindo, de tal modo que o teu peito por pouco não arrebenta?” – “Mamãe – respondia ele -, não chores, a vida é um paraíso, e todos nós estamos no paraíso, mas não queremos reconhecer, se quiséssemos reconhecer amanhã mesmo o paraíso se instauraria em todo o mundo.” Ficamos admirados com todas essas suas palavras, tão estranha e decidida foi a maneira com que as pronunciou; ficamos comovidos e choramos. Os conhecidos nos visitavam: “Meus queridos, dizia ele, meus caros, em que mereci que gostásseis de mim? por que gostais de mim como sou? e como antes eu não sabia disso, não apreciava?”. Aos criados que entravam em seu quarto ele dizia a cada instante: “Meus queridos, meus caros, por que me servem, mereço que me sirvam? Se Deus se compadecesse e me deixasse viver, eu passaria a servir a todos, pois todos devem servir uns aos outros”. Ao ouvir isso minha mãe balançava a cabeça: “Meu querido, estás falando assim por causa da doença”. – “Mamã, meu bem, dizia ele, não é possível que não haja senhores e criados, mas oxalá eu venha a ser criado de meus criados, assim como eles são meus. E ainda te digo mais, mãezinha, que cada um de nós é culpado por tudo perante todos, e eu mais que todos.” Mamãe chegou até a dar um riso, a chorar e rir: “Bem, e em que tu és mais culpado do que todos perante os demais? Entre eles há assassinos, bandidos, mas tu, que pecado pudeste cometer para te acusares mais a ti mesmo que aos outros?”. “Mãezinha, minha querida, dizia ele (ele passou a usar essas palavras amáveis, inesperadas), minha querida, meu bem, fica sabendo que, em verdade, cada um é culpado por todos e por tudo. Não sei como te explicar isto, mas sinto que é assim, e até me dá aflição. Como nos foi possível viver, nos zangarmos, sem perceber nada?” Assim ele acordava todos os dias, cada vez mais e mais enternecido e alegre, todo fremente de amor. Às vezes aparecia o médico, o velho alemão Eisenschmidt: “Então, doutor, ainda vou viver mais um diazinho no mundo?” – brincava por vezes com ele. “Não só um dia, mas muitos dias – respondia de quando em quando o médico -, há de viver meses e anos ainda”. – “Ora, para que anos, para que meses! – chegava a exclamar. – Para que contar dias, se um dia é suficiente ao homem para que ele conheça a felicidade? Meus queridos, por que brigamos, por que nos vangloriamos uns perante os outros, por que guardamos rancor uns dos outros? vamos direto para o jardim e passeemos e brinquemos, amando e elogiando uns aos outros, e beijando, e bendizendo nossa vida.” – “Vosso filho já não é deste mundo – disse o médico a mamãe quando ela o acompanhou até a saída -, está passando da doença à loucura.” As janelas de seu quarto davam para o jardim, e nosso jardim era cheio de sombras, com árvores antigas, nas árvores germinavam os brotos da primavera, vários pássaros pousavam, grasnavam, cantavam na janela dele. E, olhando para eles e deliciando-se com eles, ele começou de repente a também lhes pedir perdão: “Pássaros de Deus, pássaros radiantes, desculpem-me vocês também, porque eu também pequei perante vocês”. Naquele momento nenhum de nós conseguia entender isso, mas ele chorava de alegria: “Sim, dizia ele, eu tinha a meu redor aquela glória de Deus: pássaros, árvores, prados, céus, e só eu vivia na desonra, só eu havia desonrado tudo, e não notei absolutamente a beleza e a glória”. – “Tu estás assumindo muitos pecados” – chegava a chorar minha mãe. “Mãezinha, meu bem, estou chorando de alegria e não de tristeza; eu mesmo quero ser culpado perante eles, só não posso te explicar isso pois nem sei como amá-los. Que eu seja pecador perante todos, mas em compensação também serei perdoado por todos – eis o paraíso. Por acaso não estou neste momento no paraíso?”
E ainda houve muita coisa que não dá para rememorar nem inserir. Lembro-me de que uma vez entrei sozinho em seu quarto quando não havia ninguém com ele. Era a hora vespertina, clara, o sol caminhava para o poente e iluminava todo o quarto com um raio oblíquo. Ao me ver ele me chamou, eu me aproximei, ele me segurou pelos ombros com ambas as mãos, olhou para meu rosto enternecido, com amor; não disse nada, apenas ficou me olhando cerca de um minuto: “Bem, disse ele, agora vai, brinca, vive por mim!”. Então saí e fui brincar. Mais tarde, lembrei-me muitas vezes em minha vida, com lágrimas nos olhos, de como ele mandou que eu vivesse por ele. Ainda disse muitas daquelas coisas maravilhosas e belas, embora incompreensíveis para nós naquele momento. Faleceu na terceira semana depois da Páscoa, consciente, e embora já sem poder falar, não mudou até sua última hora: aspecto alegre, alegria nos olhos, o olhar nos procurando, rindo para nós, chamando-nos. Até na cidade muito se falou de seu falecimento. Tudo isso me deixou abalado naquele momento, mas não em excesso, embora eu tivesse chorado muito na hora de seu enterro. Eu era jovem, uma criança, mas tudo ficou indelével em meu coração, um sentimento encastelou-se aí. Teria de emergir e manifestar-se quando chegasse o momento. Foi o que aconteceu. (Dostoievski, Os irmãos Karamázov)

12 de nov. de 2011

Introdução à vida não-fascista


Durante os anos 1945-1965 (falo da Europa), existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os sistemas de signos - e significantes - com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época.
Depois, vieram cinco anos breves, apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo, o Vietnã, o primeiro golpe em direção aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior de nossos muros, o que exatamente se passa? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada por dois frontes - a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. De todo modo, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a Primeira Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, teve sob seus encantos as frações mais utopistas da Europa - a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas - retornou para abraçar a realidade mesma: Marx e Freud esclarecidos pela mesma incandescência.
Mas é isso mesmo o que se passou? Era uma retomada do projeto utópico dos anos trinta, desta vez, na escala da prática social? Ou, pelo contrário, houve um movimento para lutas políticas que não se conformavam mais ao modelo prescrito pela tradição marxista? Para uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.
O Anti-Édipo mostra, pra começar, a extensão do terreno ocupado. Porém, ele faz muito mais. Ele não se dissipa na difamação dos velhos ídolos, mesmo se divertindo muito com Freud. E, sobretudo, nos incita a ir mais longe.
Seria um erro ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica (vocês sabem, essa famosa teoria que se nos costuma anunciar: essa que vai englobar tudo, essa que é absolutamente totalizante e tranquilizadora, essa, nos afirmam, “que tanto precisamos” nesta época de dispersão e de especialização, onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso buscar uma “filosofia” nesta extraordinária profusão de novas noções e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel pomposo. Penso que a melhor maneira de ler o Anti-Édipo é abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de acoplamentos, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas. Questões que surgem menos do porque das coisas do que de seu como. Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.
Daí os três adversários aos quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por meios diferentes.
1) Os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, esses que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.
2) Os lastimáveis técnicos do desejo - os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.
3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do AntiÉdipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.
Eu diria que o Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França depois de muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não é limitado a um “leitorado” [“lectorat”] particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.
Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, se poderia dizer que o Anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista[1].
Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
- Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;
- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;
- Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;
- Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;
- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
- Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;
- Não caia de amores pelo poder.
Poder-se-ia dizer que Deleuze e Guattari amam tão pouco o poder que eles buscaram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Por isso os jogos e as armadilhas que se encontram espalhados em todo o livro, que fazem de sua tradução uma verdadeira façanha. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, essas que buscam seduzir o leitor, sem que ele esteja consciente da manipulação, e que finda por assumir a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são as do humor: tanto os convites a se deixar expulsar, a despedir-se do texto batendo a porta. O livro faz pensar que é apenas o humor e o jogo aí onde, contudo, alguma coisa de essencial se passa, alguma coisa que é da maior seriedade: a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas.
[Michel Foucault. Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento – Link: http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/vidanaofascista.pdf ]
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[1] Francisco de Sales. Introduction à la vie devote (1064). Lyon: Pierre Rigaud, 1609.