"passarinho no ninho, tudo envelheceu; cobra no buraco, palavra morreu"

13 de nov. de 2010

[É uma bruxa, essa tal de Madalena]


É uma bruxa, essa tal de Madalena, e de seu chapéu longo, de ponta caída, pende uma corda amarrada num banco onde a criança brinca de se balançar (Madalena carrega o mundo todo na balança).

Madalena tem olhos de bruxa, por isso é cega e enxerga o que quer. E Madalena também tem boca de bruxa, por isso não fala e quando fala é pra me amaldiçoar: Madalena me quer longe, e por isso não me chama pra perto e se me chama pra perto me cospe injúrias e me faz hipopótamo, e eu hipopotamomeio até o amanhecer, porque sempre amanhece, Madalena, sempre amanhece e por isso viro gente e por isso não pode dormir; porque amanhece e você, Madalena, e você teme o amarelo, o forte amarelo, o imponente amarelo que coagula por teu jardim de torturas –porque tuas sanguessugas voltam suas corolas para o diamante luminoso e tuas margaridas se deliciam com o cheiro de morte (o sol e o raiar do dia são a morte que não encontra). E Madalena também tem ouvidos de bruxa, por isso ouve tudo o que quer e nunca me entende e quando me entende é quando não me ouve; porque eu falo e falo e ela me lança diabruras, terríveis diabruras e eu lhe respondo: “[Madalena, você nunca me entende, Madalena, te falo doutro idioma, te digo de minhas imperipécias, me condôo com tua palpitação exacerbada, com teu mexer de mãos convulsos. Falo do temor que tenho de teus olhos salutares, de tua voz rouca e áspera que me fere ou me espeta com candura, falo apenas que tudo admiro, Madalena, que sou terno. Você não me entendeu, Madalena, só isso. Eu que não soube falar,]perdão”. E Madalena também tem nariz de bruxa, e não é só pela verruga que lhe disfarça as narinas intumescidas: Madalena ama os cheiros tuberculosos e tem um olfato infinito.


Há vezes em que não vejo sua corcunda, me esqueço de seus passos claudicantes, de suas mãos amassadas. Há vezes em que Madalena me aparece, talvez em sonhos, ou quando não distingo nada, à luz da vela, ou quando testo suas poções, há vezes em que Madalena é toda o rosto, pairando num ar pestilento. Um rosto que saltita sem passos. Madalena é só um rosto que encobre minha admiração, meu nervosismo em me fazer presente, em me fazer atento às suas necessidades. Madalena é só um rosto de sorriso marcado, de descrédito, a apontar minha insensatez, a desarmar minhas vestes de idiota.

Enferma que é, Madalena me lança para o alto, para as estrelas que nos dizem as verdades de um universo incognoscível, para todos aqueles sóis distantes onde ela enxerga os passos da humanidade prestes a decair num ciclo de atrocidades. Madalena, na cama, alucina e enxerga a história de meus descendentes, do filho que irá me matar e do neto que irá matar meu filho e da força de suas maldições, que farão meu nome desaparecer por entre a tempestade de fagulhas sonoras.

Madalena não sai da cama por dias, é deitada que passa os piores desafetos. E quando levanta é sempre para revisitar sua despensa, conferir as sujeiras que deixo acumular, os animais que agora passam fome, o caldeirão que junta restos de comida.

Faz tempo que não recebo pelos meus serviços, faz tempo que vejo a porta de saída entreaberta: é a única porta que Madalena não faz questão de ver fechada, faz tempo que entorno de Madalena vejo os objetos pontiagudos, os frascos de veneno, as pistolas carregadas: tudo naquela casa me diz da única tarefa que espera o meu trato dedicado. E não ter forças para realizá-la e não ter competência para cumpri-la e não ter amor suficiente para satisfazê-la.

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