"passarinho no ninho, tudo envelheceu; cobra no buraco, palavra morreu"

22 de nov. de 2010

A Espelunca é um boteco. No balcão, conversam dois operários.

“Eu estava no trabalho, meu amigo. E era hora do almoço. Tinha acabado de chegar uma daquelas máquinas que são as novas atrações de todo o país: elas conseguem entender o que a pessoa pede e conseguem fabricar na hora. E a filha do chefe estava lá, ela estava séria e tinha o seu ursinho na mão. A gente comia, sentado no concreto, e conversava sobre como arrumar uma máquina tão complicada. Porque essas novas máquinas, dizia um dos colegas, custam muito para ser consertadas e vale mais a pena jogar fora, pelo menos é o que acontece. É, dizia outro, eu mesmo tenho uns quatro robôs em casa que achei no lixo... A gente ia conversando até que a menina atravessou todo o pátio e foi direto pro robô. A gente achou graça porque o robô estava quebrado, mas ninguém falou nada porque é assim que deve ser. Ela se pôs diante das imensas articulações metálicas, daquela imensidão de ferro e óleo e disse me ensina a ser como você. O robô começou a calcular (os robôs pesquisam o que cada frase quer dizer, o que, em geral, é bastante rápido) e a menina não entendeu a fumaça saindo pelos orifícios e o cheiro de queimado. E a gente se espantou e ficou com medo que a máquina explodisse, porque as máquinas não podem agir assim, porque mesmo quebradas, as máquinas não podem ser desse jeito. E a menina perguntou qual o problema e para isso a máquina respondeu. Ela disse problema. Sim, foi isso que perguntei, qual o problema, a menina disse. E a máquina voltou a dizer problema. O que está acontecendo com você, foi o que a menina lhe perguntou. E a máquina voltou a se mexer e do compartimento de suas costas saíram aparelhos que filmavam e a menina se viu como se estivesse na internet e a menina disse internet e a máquina disse internet. E o braço girava no ar refletindo o céu, os prédios, suas próprias engrenagens, e parou nos olhos sorridentes e negros da pelúcia e na criança que sorriu. Sim, ela disse, esta sou eu e R4F13, ela disse olhando para o chão, essa sou eu e R4F13 e a gente decidiu que quer ser, ela pausou, e a gente decidiu que quer ser uma máquina, a gente quer ser uma máquina e saber das coisas, saber das respostas, é isso que a gente quer, saber das respostas e poder ficar parado, assim, simplesmente, poder ficar parado dando respostas e dando presentes, é isso que a gente quer; como a gente faz pra ser uma máquina. Máquina. É, senhora máquina, a gente quer ser como você, senhora máquina, porque você sabe das coisas e você não respira e nem precisa piscar e nem precisa dormir com um urso e nem precisa ter pêlos; você nunca precisou ir pra escola, senhora máquina, e sabe mais que toda a escola junta e ser urso é muito fácil porque é só ter pêlos e ser criança é muito fácil porque a gente só precisa respirar e piscar e engolir saliva (foi o que a professora disse, ela disse que a gente hoje só é diferente das máquinas porque a gente respira e pisca e tem saliva) e é por isso que eu quero ser máquina, senhora máquina, não quero ter que respirar nem quero ter que piscar nem quero ter que engolir saliva e ele não quer mais ter pêlo, nunca mais. Nunca mais, a máquina disse e de repente a gente percebeu que ela estava com sérios problemas porque a máquina parou e suas articulações se desmontaram. Nunca mais, a máquina disse e repetiu nunca mais.
“Então a menina estava lá, diante da máquina desmontada, chutando as peças no chão, gritando para a máquina eu quero ser uma máquina, me faça ser uma máquina. E foi tudo muito complicado porque chegou nosso chefe e perguntou o que está acontecendo aqui. E ninguém teve coragem de dizer o que tinha acontecido porque a menina estava chorando e o ursinho estava largado no chão e o cheiro de óleo queimado era muito forte e tinha muita fumaça. E ele voltou a perguntar o que está acontecendo aqui e então eu tive de dizer que estávamos na hora do almoço, senhor, e chegou a menina e ela foi falar com a máquina quebrada, senhor, e a gente achou que não devia dizer que a máquina estava quebrada porque são estas as ordens, senhor, e a gente ficou torcendo para ela pedir alguma coisa pequena que fosse fácil para a máquina fazer, senhor, mas a máquina não conseguiu dar o que ela queria e a máquina emperrou e nem conseguia responder. E ele me olhou e estava bravo e mandou continue. E eu disse a gente ficou olhando ela conversar com a máquina e a máquina não respondia, foi só isso que aconteceu, senhor. Eu quero que vocês, ele disse, parem de almoçar e arrumem essa bagunça e deixem o salão limpo e eu quero esta máquina consertada e pronta para dar o que a minha filha quiser, vocês entenderam. E a gente respondeu que tinha entendido e eu comecei a falar mas, senhor, o senhor não ouviu o que a menina e ele me interrompeu dizendo para fazer o que ele manda e eu me calei porque é assim que deve ser. E ele foi embora e fomos limpando enquanto a menina nos olhava e gritava para arrumar logo a máquina, ela gritava, consertem a máquina antes que papai volte, porque eu quero ser uma máquina antes que papai volte porque assim papai não vai poder me impedir. E a gente se apressava a limpar tudo até que ouvimos um barulho esquisito, um barulho muito esquisito, de metal riscando o chão e a menina começou a gritar.
“Ficamos desesperados, meu amigo. Absolutamente desesperados”.
“Por quê?”, o amigo perguntou.
“Amigão, vê mais duas dessa aqui”.
“Que aconteceu?”, o amigo insistiu.
“E então?”, era o dono d’A Espelunca.
“E então eu me virei, eu me virei e vi que a máquina quebrada, uma das articulações da máquina quebrada, tinha agarrado o pé da menina e a menina gritava de medo. Então, da caixa de som largada mais ao canto a gente ouviu me ensina a ser como você. Era o que a máquina disse e continuou máquina. Então a gente já estava lá, puxando o imenso braço mecânico, segurando a menina, chutando os fios de aço. E estávamos todos desesperados porque a máquina não soltava e a menina se debatia e o cheiro de óleo queimado se misturava agora com o cheiro de carne queimada. A ser como você, a máquina dizia. E a menina gritava, pára, pára, pára, tá doendo, pára. E alguém mandou a gente olhar para o lado e a gente viu que outro braço metálico tinha pegado o ursinho e estava balançando o ursinho no ar e parecia que ele estava sendo rasgado pelo meio, então um grupo foi acudir o ursinho, mas eu gritei ei, péra lá, a criança é mais importante. E a menina gritava tá doendo, tá doendo, socorro. Então voltamos nossa atenção para a menina que cada vez gritava mais alto e mais alto e o cheiro de carne crestando era mais forte e alguém que segurava a perna dela gritou meu deus e a gente olhou para a perna e viu que ela estava ficando quente e se metalizando e foi assustador quando alguém apontou para o lado e gritou meu deus, porque a gente se virou e viu que o urso estava totalmente sem pêlos e coberto de ferro quente e só seus olhos negros não estavam cobertos. Só seus olhos negros não estavam cobertos e de repente surgiu uma luz vermelha e a máquina segurava o urso numa altura em que podíamos ver tudo. Os olhos estavam vermelhos e a gente não sabia se era ferro líquido ou se era uma centelha de inteligência que a máquina colocava naqueles olhos. Porque era isso que a menina tinha pedido, ela pediu a gente quer ser como você. Então a máquina devia estar fazendo o que ela pediu e teve uma hora que a gente soltou a menina porque nossas mãos ardiam e a menina continuava gritando e pedindo socorro, gritando me ajuda, me ajuda, socorro, me larga, socorro. E a gente se olhava e estava todo mundo desesperado. Absolutamente desesperado.”
“Mas e a menina?”, o amigo perguntou.
“Amigão, vê mais duas dessa aqui”.
“E a menina, o que aconteceu?”, o amigo insistiu.
“Hoje em dia é muito comum esta tipo de situação”, era o dono d’A Espelunca, “as máquinas estão cada vez mais elaboradas e complexas e a gente não consegue mais entender o que acontece. Foi-se o tempo, meus amigos, em que as máquinas simplificavam as coisas. A gente perguntava e elas respondiam e ponto. Ou a gente mandava e elas faziam e ponto. Agora, meus amigos, tudo tem alcançado uma complexidade e uma potência tamanha que temos que ter cuidado com o que a gente pede, porque as máquinas podem destruir o sol pra nos dar um pouco de escuro.”
“E a menina?”
“E a menina gritava de dor”.

2 comentários:

Unknown disse...

Gyo, vc se superou nessa em ! Está realmente muito boa!
Sempre desconfiei dessas máquinas viu... acho melhor começar a olhar pro meu PC com um pouco mais de respeito, ou partir ele no meio logo, antes que ele comece mesmo a realizar meus desejos...

Daisy Serena disse...
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