"passarinho no ninho, tudo envelheceu; cobra no buraco, palavra morreu"

4 de out. de 2011

[Uma vez Therese falou]

Uma vez Therese falou - Karl estava de pé a seu lado na fresta e olhava para a rua - da morte de sua mãe, de como a mãe e ela - que devia ter cerca de cinco anos de idade à época - se puseram a vagar numa noite de inverno pelas ruas, cada qual com sua trouxa de roupa à procura de um lugar para dormir; como de início a mãe a levava pela mão (havia uma tempestade de neve, era difícil avançar) até que essa mão ficou paralisada e, sem nem virar para trás para ver se ainda estava lá, largou Therese que precisou então fazer esforço para se agarrar nas saias da mãe. Com frequência Therese tropeçava e quase caía, mas a mãe estava como que num delírio e não parou. E que nevascas aquelas, nas longas e retas avenidas noviorquinas! Karl ainda não havia passado nenhum inverno em Novayork. Caminhando contra o vento, que sopra num redemoinho, não se consegue abrir os olhos nem por um instante, o vento esfrega sem cessar a neve cortante sobre o rosto, caminha-se mas não se avança um passo, é um desespero. Naturalmente, nessas condições, uma criança leva vantagem em relação a um adulto: passa por baixo das rajadas de vento e até se diverte com tudo aquilo. Assim, também Therese naquela noite fora incapaz de compreender a mãe inteiramente e tinha a firme convicção de que se a tivesse tratado de modo mais inteligente - mas Therese era ainda uma criança tão pequena! - a mãe não teria sido obrigada a morrer uma morte tão miserável. Naquela ocasião a mãe estava já havia dois dias sem trabalho, não possuíam nem um vintém, haviam passado o dia a céu aberto, sem comer nadinha, e em suas trouxas carregavam consigo somente trapos inúteis que, talvez por superstição, não ousavam jogar fora. Ora, fora prometido à mãe trabalho na manhã seguinte num canteiro de obras, mas ela temia - como procurou explicar a Therese ao longo de todo o dia - não ser capaz de aproveitar a oportunidade, pois sentia-se morta de cansaço e, já pela manhã, para horror dos transeuntes, cuspira muito sangue na rua; seu único desejo era chegar a algum lugar quente e repousar. E justo naquela noite estava impossível conseguir um lugarzinho qualquer. Quando não eram mandadas embora pelos zeladores já na entrada dos prédios, nos quais ao menos teriam podido se recobrar um pouco dos efeitos da intempérie, atravessavam correndo gélidos e apertados corredores, subiam até os andares superiores, andavam em círculos nas estreitas sacadas que circundavam os pátios, batiam indiscriminadamente nas portas, ora sem falar com ninguém, ora implorando a todos os que encontravam; e por uma ou duas vezes a mãe agachou-se sem fôlego no degrau de uma escada solitária, estreitou Therese - que quase opunha resistência - contra si e beijou-a com dolorosa pressão de seus lábios. Sabendo-se depois que estes tinham sido os últimos beijos, não se pode entender como, por menor que fosse a criaturinha, ela pudesse ter sido tão cega a ponto de não compreender o que acontecia. Alguns aposentos pelos quais passavam tinham as portas abertas para permitir a saída do ar sufocante e em meio àquela névoa de fumaça que, como se causada por um incêndio, enchia o ambiente, surgia somente a figura de alguém que aparecia no batente da porta, indicando com sua muda presença ou com uma palavra curta e grossa a impossibilidade de encontrar abrigo naquele quarto. Agora, vendo as coisas em retrospecto, parecia a Therese que só nas primeiras horas a mãe tinha procurado seriamente por algum lugar, porque depois da meia-noite mais ou menos ela não dirigira a palavra a mais ninguém, embora não tivesse cessado de vagar, com pequenas pausas, até o amanhecer, e embora houvesse naqueles prédios, onde nunca se fecham nem as portas de entrada nem as dos apartamentos, uma contínua movimentação e a todo momento se encontrassem pessoas. É claro que não era um passo que as fizesse avançar rapidamente, mas era só o esforço máximo de que eram capazes, e na realidade podia bem ser apenas um arrastar-se. Therese não sabia também se entre a meia-noite e as cinco da madrugada elas tinham estado em vinte prédios, em dois prédios ou num só prédio. Os corredores desses prédios tinham sido construídos segundo projetos que visavam um melhor aproveitamento do espaço, mas que não levavam em conta a necessidade de se orientar com facilidade dentro deles - quantas vezes tinham passado pelos mesmos corredores! Therese tinha na lembrança, por certo obscura, terem saído de um prédio depois de tê-lo percorrido por uma eternidade, mas depois lhe parecera igualmente que na rua tinham dado meia volta e se precipitado de novo para o interior do mesmo prédio. Era naturalmente um sofrimento inconcebível para a criança ser arrastada, ora levada pela mãe, ora agarrando-se nela, sem a menor palavra de consolo; e, na sua ignorância, tudo aquilo parecia ter uma única explicação: que a mãe desejava fugir e abandoná-la. Por isso, por segurança Therese agarrava-se ainda com uma das mãos nas suas saias, mesmo quando ela a segurava pela outra, e de vez em quando chorava alto. Ela não queria ser deixada para trás ali, entre pessoas que subiam a escada fazendo estrondo à sua frente ou que se aproximavam por trás delas, ainda invisíveis, atrás de uma curva da escada, pessoas que brigavam nos corredores diante de uma porta e que se empurravam para o interior do quarto. Bêbados perambulavam pelo prédio cantarolando com voz abafada, e por sorte a mãe conseguiu ainda passar com Therese por entre esses grupos que iam se fechando em torno delas. Com certeza, a altas horas da noite, quando ninguém mais estivesse prestando atenção e ninguém mais fizesse questão de afirmar os seus direitos, poderiam ao menos introduzir-se para dentro de algum daqueles dormitórios coletivos alugados por empresários, e pelos quais haviam passado, mas Therese não entendia e a mãe não queria mais repouso. De manhã, no começo de um belo dia de inverno, ambas encostaram na parede de um prédio, e talvez tivessem dormido um pouco ali, ou talvez somente fitado em torno com olhos arregalados. Ocorre que Therese tinha perdido a sua trouxa e, como castigo por sua detenção, a mãe já estava prestes a bater nela - mas Therese não ouviu nem sentiu nenhuma palmada. Continuaram então andando pelas ruas que iam se animando, a mãe encostada na parede, e passaram por uma ponte, onda a mãe tirou com a mão o gelo do peitoril, chegando finalmente (na época Therese aceitara o fato; hoje ela não conseguia compreender) justo àquele canteiro de obras onde haviam prometido à mãe trabalho para aquela manhã. Ela não disse a Therese se devia esperar ou ir embora, e ela tomou isso como ordem para que esperasse, já que era o que correspondia melhor aos seus desejos. Sentou-se pois sobre uma pilha de tijolos e ficou olhando a mãe abrir a sua trouxa, tirar um trapo colorido e cobrir com ele o seu lenço de cabeça, que ela vestira durante a noite. Therese estava cansada demais para sequer pensar em ajudar a mãe. Sem se apresentar no barracão da obra como de costume, e sem perguntar a ninguém, a mãe subiu uma escada, como se já soubesse o trabalho que devia realizar. Therese estranhou, pois as ajudantes habitualmente ocupavam-se apenas de dissolver o cal, de alcançar os tijolos e de outros trabalhos simples feitos embaixo. Por isso pensava que a mãe estivesse querendo realizar algum trabalho melhor remunerado naquele dia, e lançou-lhe um sorriso sonolento. A construção ainda não estava alta, mal chegara ao andar térreo, embora as altas vigas dos andaimes destinados à construção futura - ainda sem as pranchas de comunicação - se destacassem contra o céu azul. No alto a mãe desviava-se habilmente dos pedreiros que assentavam tijolo com tijolo e que incompreensivelmente não lhe pediam explicações; ela se segurava com cuidado tocando de leve num tabique de madeira que servia de corrimão, e lá embaixo, Therese em sua sonolência admirava-se dessa habilidade, acreditando ainda receber um olhar amável de sua mãe. Mas em seguida, caminhando, a mãe chegou até uma pequena pilha de tijolos, antes da qual terminava o corrimão e, provavelmente, também o caminho; ela não se importou com isso: andou em direção à pilha de tijolos e, dando um passo por cima deles, despencou no vazio. Muitos tijolos rolaram atrás dela e, por fim, um bom tempo depois, uma tábua pesada se desprendeu de algum lugar, caindo ruidosamente sobre seu corpo. A última lembrança que Therese tinha de sua mãe era essa visão: caída, de pernas abertas, vestindo ainda a saia quadriculada que havia trazido da Pomerânia, a tábua pesada que quase a cobria, as pessoas que acorriam de todos os lados e a voz de um homem que do alto gritava furioso para baixo. [Franz Kafka, O Desaparecido]

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