"passarinho no ninho, tudo envelheceu; cobra no buraco, palavra morreu"

6 de jan. de 2012

Do materialismo encantado


Amados pares e mestres, nasci numa distante província do Norte, na cidade de V., de pai nobre mas não de casta, e de condição bastante modesta. Morreu quando eu tinha apenas dois anos e não me lembro absolutamente dele. Deixou para minha mãe uma pequena casa de madeira e algum capital, não grande, mas suficiente para viver com os filhos sem passar necessidade. Minha mãe tinha apenas dois filhos: eu, Zinóvi, e meu irmão mais velho, Márkel. Era uns oito anos mais velho do que eu, cabeça quente e irascível, mas bondoso, alheio a caçoadas e até estranho de tão calado, sobretudo em casa, comigo, com minha mãe e os criados. Era bom aluno no colégio, mas não fazia amizade com os colegas, embora também não brigasse; ao menos era assim que minha mãe o recordava. Meio ano antes de sua morte, já com dezessete anos, deu para visitar a casa de um homem que vivia isolado em nossa cidade, uma espécie de exilado político deportado de Moscou para nossa cidade por ser um livre-pensador. Esse exilado era um sábio importante e filósofo renomado na universidade. Por alguma razão gostou de Márkel e passou a recebê-lo. Meu jovem irmão passava tardes inteiras em casa dele e isso durou todo o inverno, até que o exilado foi chamado de volta para o serviço público em Petersburgo, por um especial pedido seu, pois tinha protetores. Começou a Quaresma e Márkel não queria jejuar, insultava até zombava dessa prática: “Tudo isso são maluquices, dizia ele, e não existe Deus nenhum” – de sorte que minha mãe e os criados ficaram horrorizados, e eu um pouco, porque, embora tivesse apenas nove anos, essas palavras me deixaram muito assustado. Todos os nossos criados eram servos, quatro ao todo, todos comprados em nome de um grande senhor de terras nosso conhecido. Ainda me lembro de que minha mãe vendeu um dos quatro, a cozinheira Afímia, coxa e idosa, por sessenta rublos em papel, e em seu lugar contratou uma cozinheira livre. E eis que na sexta semana da Quaresma meu irmão piorou subitamente, se bem que sempre tivesse sofrido do peito, era de compleição fraca e predisposto à tísica; de boa estatura, mas delgado e doentio, ainda assim tinha um rosto agradável. Não sei se teria gripado, mas o médico apareceu lá em casa e logo cochichou à minha mãe que ele estava com uma tísica galopante e não sobreviveria à primavera. Minha mãe começou a chorar, a pedir cautelosamente (mais para não assustá-lo) que meu irmão jejuasse e comungasse nos santos mistérios divinos, porque ainda estava de pé. Ao ouvir isso, zangou-se e destratou o templo de Deus, mas caiu em meditação: logo percebeu que estava com uma doença perigosa e por isso a mãe o mandava se confessar e comungar enquanto ele ainda tinha forças. Aliás, ele mesmo já sabia que estava doente havia muito tempo, e um ano antes, à mesa, tocara friamente nesse assunto comigo e com minha mãe: “Não sou mais deste vosso mundo, talvez não dure nem mais um ano”, e foi como se tivesse profetizado. Uns três dias depois começou a Semana Santa. E meu irmão passou a jejuar desde a manhã de terça-feira. “Mãezinha, estou fazendo isto propriamente pela senhora, para deixá-la contente e tranquila” – disse-lhe. Minha mãe chorou de alegria e também de aflição: “Quer dizer que o fim dele está próximo, se lhe vem uma mudança tão repentina”. Mas não foi por muito tempo à igreja, caiu de cama, de sorte que já o confessaram e lhe deram comunhão em casa. Os dias andavam serenos, claros, cheios de fragrância no ar, a Páscoa caíra tarde naquele ano. Lembro-me de que ele passava a noite inteira tossindo, dormia mal, e de manhã sempre se vestia e tentava sentar-se numa poltrona macia. É assim que me lembro dele: sentado, sereno, dócil, rindo, doente mas de aspecto alegre, radiante. Estava de espírito completamente mudado – era maravilhosa a transformação que começara a sofrer de uma hora para outra! A velha aia entrava em seu quarto: “Meu caro, permite-me acender a lamparina diante do ícone?”. Antes ele não o permitia, até apagava. “Acende, queria, acende, eu era um monstro que lhe dava desgosto antes. Reza ao acender a lamparina a Deus, que rezarei por ti cheio de alegria. Então estaremos rezando a um único Deus”. Essas palavras nos pareceram estranhas, minha mãe ia para o seu quarto e chorava, só que ao entrar no quarto dele enxugava as lágrimas e assumia um aspecto alegre. “Mamãe, não chore, minha cara – dizia ele, às vezes -, eu ainda terei muita vida pela frente, vou me distrair muito com vocês, porque a vida, a vida é alegre, é prazerosa!” – “Ah, querido, que alegria podes ter se passas a noite ardendo em febre e tossindo, de tal modo que o teu peito por pouco não arrebenta?” – “Mamãe – respondia ele -, não chores, a vida é um paraíso, e todos nós estamos no paraíso, mas não queremos reconhecer, se quiséssemos reconhecer amanhã mesmo o paraíso se instauraria em todo o mundo.” Ficamos admirados com todas essas suas palavras, tão estranha e decidida foi a maneira com que as pronunciou; ficamos comovidos e choramos. Os conhecidos nos visitavam: “Meus queridos, dizia ele, meus caros, em que mereci que gostásseis de mim? por que gostais de mim como sou? e como antes eu não sabia disso, não apreciava?”. Aos criados que entravam em seu quarto ele dizia a cada instante: “Meus queridos, meus caros, por que me servem, mereço que me sirvam? Se Deus se compadecesse e me deixasse viver, eu passaria a servir a todos, pois todos devem servir uns aos outros”. Ao ouvir isso minha mãe balançava a cabeça: “Meu querido, estás falando assim por causa da doença”. – “Mamã, meu bem, dizia ele, não é possível que não haja senhores e criados, mas oxalá eu venha a ser criado de meus criados, assim como eles são meus. E ainda te digo mais, mãezinha, que cada um de nós é culpado por tudo perante todos, e eu mais que todos.” Mamãe chegou até a dar um riso, a chorar e rir: “Bem, e em que tu és mais culpado do que todos perante os demais? Entre eles há assassinos, bandidos, mas tu, que pecado pudeste cometer para te acusares mais a ti mesmo que aos outros?”. “Mãezinha, minha querida, dizia ele (ele passou a usar essas palavras amáveis, inesperadas), minha querida, meu bem, fica sabendo que, em verdade, cada um é culpado por todos e por tudo. Não sei como te explicar isto, mas sinto que é assim, e até me dá aflição. Como nos foi possível viver, nos zangarmos, sem perceber nada?” Assim ele acordava todos os dias, cada vez mais e mais enternecido e alegre, todo fremente de amor. Às vezes aparecia o médico, o velho alemão Eisenschmidt: “Então, doutor, ainda vou viver mais um diazinho no mundo?” – brincava por vezes com ele. “Não só um dia, mas muitos dias – respondia de quando em quando o médico -, há de viver meses e anos ainda”. – “Ora, para que anos, para que meses! – chegava a exclamar. – Para que contar dias, se um dia é suficiente ao homem para que ele conheça a felicidade? Meus queridos, por que brigamos, por que nos vangloriamos uns perante os outros, por que guardamos rancor uns dos outros? vamos direto para o jardim e passeemos e brinquemos, amando e elogiando uns aos outros, e beijando, e bendizendo nossa vida.” – “Vosso filho já não é deste mundo – disse o médico a mamãe quando ela o acompanhou até a saída -, está passando da doença à loucura.” As janelas de seu quarto davam para o jardim, e nosso jardim era cheio de sombras, com árvores antigas, nas árvores germinavam os brotos da primavera, vários pássaros pousavam, grasnavam, cantavam na janela dele. E, olhando para eles e deliciando-se com eles, ele começou de repente a também lhes pedir perdão: “Pássaros de Deus, pássaros radiantes, desculpem-me vocês também, porque eu também pequei perante vocês”. Naquele momento nenhum de nós conseguia entender isso, mas ele chorava de alegria: “Sim, dizia ele, eu tinha a meu redor aquela glória de Deus: pássaros, árvores, prados, céus, e só eu vivia na desonra, só eu havia desonrado tudo, e não notei absolutamente a beleza e a glória”. – “Tu estás assumindo muitos pecados” – chegava a chorar minha mãe. “Mãezinha, meu bem, estou chorando de alegria e não de tristeza; eu mesmo quero ser culpado perante eles, só não posso te explicar isso pois nem sei como amá-los. Que eu seja pecador perante todos, mas em compensação também serei perdoado por todos – eis o paraíso. Por acaso não estou neste momento no paraíso?”
E ainda houve muita coisa que não dá para rememorar nem inserir. Lembro-me de que uma vez entrei sozinho em seu quarto quando não havia ninguém com ele. Era a hora vespertina, clara, o sol caminhava para o poente e iluminava todo o quarto com um raio oblíquo. Ao me ver ele me chamou, eu me aproximei, ele me segurou pelos ombros com ambas as mãos, olhou para meu rosto enternecido, com amor; não disse nada, apenas ficou me olhando cerca de um minuto: “Bem, disse ele, agora vai, brinca, vive por mim!”. Então saí e fui brincar. Mais tarde, lembrei-me muitas vezes em minha vida, com lágrimas nos olhos, de como ele mandou que eu vivesse por ele. Ainda disse muitas daquelas coisas maravilhosas e belas, embora incompreensíveis para nós naquele momento. Faleceu na terceira semana depois da Páscoa, consciente, e embora já sem poder falar, não mudou até sua última hora: aspecto alegre, alegria nos olhos, o olhar nos procurando, rindo para nós, chamando-nos. Até na cidade muito se falou de seu falecimento. Tudo isso me deixou abalado naquele momento, mas não em excesso, embora eu tivesse chorado muito na hora de seu enterro. Eu era jovem, uma criança, mas tudo ficou indelével em meu coração, um sentimento encastelou-se aí. Teria de emergir e manifestar-se quando chegasse o momento. Foi o que aconteceu. (Dostoievski, Os irmãos Karamázov)

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