"passarinho no ninho, tudo envelheceu; cobra no buraco, palavra morreu"

4 de fev. de 2014

O pesadelo é rabiscado do seguinte modo:

desembarcarei na próxima estação do metrô P (ou a de onde M. me espera em sua casa, como há uns anos, ou a que se desenha em meu imaginário, da sorveteriadebairro, do sobradocongaragem, da vizinhança florida de música e amigos na calçada). Estou sentado. Todas as cadeiras do vagão são corpos a descansar de um longo dia de trabalho ou da longa viagem de corredores de concreto a rasgar a epiderme da Cidade. Apenas uma pessoa está de pé, uma mulher. Quando o trem começa a diminuir a velocidade, levanto-me. Quase sem esperar a concretização de meus movimentos vacilantes (o trem solavanca em sua estocada), ela se senta; deve estar muito cansada, penso, mas poderia ter um pouco mais de educação. Aguardo, diante das portas, o trem parar. Algumas pessoas me olham através do vidro; eu as vejo como borrões de cores dissonantes até mudar o foco de meu olhar e me deparar com a silhueta que se reflete, translúcida. A imagem que construo de mim. O trem, enfim, para. O que sou, além deste vidro riscado por estiletes de bêbados?... Só então reparo que a porta ainda não se abriu, que a porta nunca se abrirá, e sou levado em imaginação para Macondo para o trem a percorrer infinitamente o perímetro da América -daquela “América” que nos tomou de assalto nosso nome- sem paradas sem baldeações com o ingresso comprado apenas para a ida e me lembro então das ciganas das prostitutas e da santa idiota levada viva para o céu numa tarde de ventania pelas quais me apaixonei por todas aquelas madrugadas debruçado na leitura; 100 Anos de Solidão a traçar no labirinto de suas linhas a imagem da América Latina, explorada e vilipendiada por séculos de martírio e resignação, a Macondo inalcançável de nossos sonhos, a Odisséia de nosso povo! - como cheguei a esboçar em um de meus alumbramentos - o livro emprestado por M. Impotente, me resigno, falso, e não grito. Em breve o metrô irá girar as roldanas que o movem para diante. Sempre para diante. Seguirá seu rumo, perfurando as fibras da crosta, a ossadura tectônica, ao encontro do coração fervilhante da Terra; a percorrer, sinuosamente, abismos insondáveis, construções absurdas meticulosamente lapidadas pelo tempo - invisíveis aos olhos, tamanha a escuridão - até a morte ou à eternidade.

2 comentários:

Anônimo disse...

fez sentido tu ter mandado, sim. Não sei porque levei tanto tempo pra responder... Afinal, queria tanto encontrar alguém pra trocar ideia sobre Garcia Marquez! Espero que tu veja isso.

vdelunetas

Q. disse...

Poxa, só vi teu comentário agora, meses depois. Quase como cartas enviadas há muito e que nem saberemos se realmente um dia chegarão. Desses descaminhos que tecemos em esperança.