Então você está diante da casa de seus pais, ou de quem cuidou de você quando criança. Você está lá, diante do portão, com o sol a bater seu amarelo no cinza ou no branco ou mesmo no marromadeira das grades. É, agora, um visitante. Mas não é isso que faz teus passos vacilarem para a recepção calorosa ou rotineira ou indiferente de quem lá habita; um cachorro, enorme, entre você e o muro gradeado, late como um demônio ensandecido. Seus pelos eriçados, o branco de seus caninos atrozes, suas garras afiadas riscando o asfalto. “Os olhos da fera são pura superfície - você observacertadamente - por isso agem como um espelho refletindo o medo; o medo e sua irmã mais velha, a impotência”. Trata-se de um sonho, você imagina, afinal, não se lembra de como chegou ali e mesmo os cães da vizinhança, que sempre te intimidaram na infância, nunca pareceram tão selvagens e assustadores; mesmo assim, não dá um passo adiante. Você está parado, com os músculos prontos para a disparada – o cão só ameaça: estático, ele late: um aviso que você traduz na assertiva “A morte é a soma do movimento de meu corpo convulso com o salto da fera”. De repente o portão da tua casa se abre e o desespero te invade, “o cão pode pensar que sou eu o responsável pela tração da máquina, como se quisesse distraí-lo”, você pensa. Mas não. Tenta gritar. O medo te impede. Em saraivada claudicante o velho cão de tua antiga casa se precipita contra o demônio; você quer impedir o massacre mas não se move; o Cérbero avança e crava seus caninos radiantes no rabo do outro, que guincha de medo que se esgane de desespero que ladra de dor e você vê o vermelho da carne e os movimentos convulsos que aquele desenho absurdo faz parecer, um animal misturado a outro, formando um mesmo corpo, a morder o rabo, perfazendo um círculo torto. Oroboro ou Uroboros ou mesmo Ouroboros é uma cobra que morde a si mesma, num círculo em movimento. A ideia de que o fim e o começo se encontram num mesmo ponto, a imagem do Eterno Retorno, esta Roda Vazia & Desprovida De Sentido, sempre te pareceu um tanto deslocada: as garras da besta caçam a si mesma em um corpo infinito, sem partida e sem chegada, mais como um símbolo da Insaciável Fome Eterna ou mais como um Símbolo Autofágico da Compulsão ou mais como um símbolo do Parafuso Espanado das Pulsões: desejar saciar entediar Ou a vontade o impulso a dor Ou a presa a mordida o rabo. Nos olhos da fera – que te refletem – em uma simbiose de indiferença e fome, você acredita ver brilhar, tão rapidamente que cataloga como uma Miséria de Tempo Ínfimo, um raio luminoso da mais profunda tristeza.
"passarinho no ninho, tudo envelheceu; cobra no buraco, palavra morreu"
13 de fev. de 2014
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